ONDE TUDO É MÚLTIPLO: NOTAS SOBRE O CONCEITO DE MULTILETRAMENTOS




                                                                                                                        Por Gabriele Araújo Batista


Não é novidade para nós, tanto como alunos quanto como futuros professores, o fato de que vivemos numa sociedade multicultural. Testemunhamos, desde que nascemos, as mudanças sociais e tecnológicas pelas quais a nossa era vem passando, cientes de que elas não cessarão. Nesse fluxo intenso de transformações e informações, nessa confluência de culturas e saberes, nos comunicamos e nos expressamos das mais variadas formas, sem sequer nos darmos conta de que, em algum momento, tivemos que ser apresentados às habilidades necessárias para nos expressarmos de determinado modo, utilizando certo recurso ou suporte. Isso porque essas práticas passam a fazer parte de nossas vidas de tal modo que vão nos parecendo orgânicas, naturais. Mas a verdade é que são aprendidas. Vimos que quando essas habilidades são relacionadas a práticas sociais de leitura e de escrita, estamos tratando do conceito de letramento, que na verdade se concretiza em letramentos, no plural, por estarem relacionados a práticas e eventos de letramento variados, que configuram-se em níveis.

Dada essa introdução, inicio nossa discussão de hoje fazendo algumas provocações: soa aceitável dizer que aprendemos a escrever uma redação argumentativa na escola, certo? Isso porque essa agência de letramento, a escola, geralmente nos torna letrados para a escrita desse gênero. Mas você se recorda de como aprendeu a produzir ou a consumir um vídeo no YouTube? Ou de que um dia teve que ser apresentado aos layouts das redes sociais que hoje usa com tanta facilidade? Pois é... São práticas que também envolvem a leitura e a escrita, mas que requerem habilidades e ferramentas diferentes das envolvidas na escrita manual e impressa, tais como recursos de áudio, edição e diagramação. Conforme Rojo e Moura (2012, p. 21), é a partir dessas demandas que surge um novo conceito, originado do de letramento, mas nunca a ele restrito: os multiletramentos.

A defesa por uma "pedagogia dos multiletramentos" ganha destaque a partir das pesquisas e das propostas de um grupo de pesquisadores dos letramentos, o Grupo de Nova Londres (GNL), que afirmava que a escola deveria "tomar a seu cargo (daí a proposta de uma ‘pedagogia’) os novos letramentos emergentes na sociedade contemporânea e [...] levar em conta formas de incluir nos currículos a grande variedade de culturas já presentes nas salas de aula" (CORRÊA; DIAS, 2016, p. 249-250). O prefixo "multi" aponta para a existência dos dois pilares, ou das duas "razões de existir" dos multiletramentos: a multiculturalidade e a multimodalidade/multissemiose. Rojo e Moura (2012, p. 13) apontam que a primeira diz respeito à multiplicidade cultural das populações, que se manifesta em produções culturais letradas - e, fundamentalmente, híbridas - que circulam socialmente. À multiplicidade semiótica dessas produções, por meio das quais a variedade cultural informa e se comunica, dá-se o nome de multimodalidade. A maioria dos textos com os quais lidamos atualmente são multimodais, pois combinam múltiplas linguagens para comunicar, seja nos meios impressos ou nos digitais. 



No que diz respeito às características dos multiletramentos, Rojo e Moura (2012, p. 23) destacam três: 01. são interativos e até mesmo colaborativos; 02. fraturam e transgridem as relações de poder estabelecidas,, em especial as relações de propriedade; e 03. são híbridos, fronteiriços, mestiços (de linguagens, modos, mídias e culturas). Se essas produções multimodais fazem parte de nossas vidas, deve a escola eximir-se de orientar seus alunos ao seu respeito? Que espaço esses textos vêm ocupando em sala de aula? E como abordá-los? Para alguns, essa prática se restringe ao controle ou mesmo à proibição do uso do celular nas aulas. Daí a necessidade de refletirmos sobre como fazer uma pedagogia dos multiletramentos. O Grupo de Nova Londres propôs alguns princípios nesse sentido, condensados no seguinte esquema:



Rojo e Moura (2012, p. 29) explicam que primeiro o indivíduo precisa transformar-se num usuário funcional com competência técnica (“saber fazer”), isto é, adquirir os “alfabetismos” necessários às práticas de multiletramentos. O papel da escola se concentraria em fazer desse indivíduo (o aluno) um analista crítico, que consome com criticidade as informações que acessa e que, tanto ao receber quanto ao produzir, é capaz de transformar os discursos em significações. 

Antes de continuarmos nossa conversa, trago novamente uma tirinha de Mafalda, usada pela colega Ellen no post sobre a diferença entre alfabetização e letramento, para refletirmos um pouco sobre o nosso assunto a partir dela.



Observando a tirinha, podemos perceber a aflição de Mafalda ao constatar que ainda não sabe ler jornais. Ora, jornais são um exemplo formidável de produção multissemiótica, e, permeados de hipertextos, contam com uma organização que demanda do leitor uma leitura que se constitui a partir de uma perspectiva dos multiletramentos. Frustrada por não ter aprendido a lidar com esses textos na escola, onde foi ensinada sobre assuntos que não “serão realmente importantes” para sua vida, a personagem se vê sem os (multi)letramentos de que necessita para consumir criticamente um jornal. Embora na tirinha os fatos sejam abordados de forma mais escancarada e irônica, a verdade é que essa é a realidade de muitos alunos do ensino básico - e até de outros níveis - em nosso país. Até que ponto nosso currículo dá conta das práticas de multiletramentos? Será que estamos formando alunos capazes de consumir e de produzir textos multimodais? Será que nossos alunos têm consciência de que vivem e constituem (n)uma sociedade multicultural que se expressa, também, através de práticas letradas cada vez mais híbridas? São questões para nos preocuparmos enquanto professores e, é claro, futuros professores. A boa notícia é que essas discussões vêm ocupando, cada vez mais, as aulas dos cursos de licenciatura, como as nossas. Não em vão contamos, em nosso curso, com a matéria que nos impulsionou a produzir esse blog: “letramento e ensino”. 

Continuemos comprometidos com os multiletramentos em nossa prática.

Para conhecer mais sobre a Pedagogia dos Multiletramentos, veja esta entrevista concedida pela professora Roxane Rojo ao programa Escrevendo o Futuro, dividida em duas partes:

Vídeo 1: https://youtu.be/IRFrh3z5T5w?si=UeYPbulUG3Pd_Cne

Video 2https://youtu.be/uj4gNjksb88?si=M6WE88RNViHKXDMF


REFERÊNCIAS

CORRÊA, Hércules Tolêdo; DIAS, Daniela Rodrigues. Multiletramentos e usos das tecnologias digitais da informação e comunicação com alunos de cursos técnicos. Trabalhos em Linguística Aplicada, v. 55, p. 241-262, 2016. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/010318134964176471>. Acesso em: 05 dez. 2023.

ROJO, Roxane; MOURA, Eduardo. Multileramentos na escola. São Paulo: Parábola Editorial, 2012.

TIRINHAS DA MAFALDA: reflexões sobre Escola, ensino e alfabetização. Espaço Educar. (2012). Disponível em: <https://www.espacoeducar.net/2012/07/tirinhas-da-mafalda-reflexoes-sobre.html>.

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